00:00 · 22.07.2017 / atualizado às 18:59
Se o primeiro passo para a maioria dos doces é deixar a fruta cair do pé, a especialidade de Therezinha Soares se dá após deixar o boi perder a pata, mocotó, ou que se diga mão-de-vaca. De tantas doçuras que prepara há mais de 50 anos, o doce de mocotó é o que mais lhe pedem para fazer em Limoeiro do Norte, sertão jaguaribano. Hoje com 84 anos, já teve o tempo de fazer, parar, fazer de novo e parar novamente. "Não tem jeito. O povo pede, eu gosto de fazer mesmo".
Mas por Therezinha ninguém conhece. Quando criança, a filha Tânia chamava a avó Rosena de 'mãe', e para a mãe balbuciava um Taiá. O apelido tornou-se um nome que lhe é mais próprio do que o da Identidade e talvez só compete em singularidade com o doce que faz: "o processo é bem demorado. Porque ele, quando vem do açougue, eu boto numa bacia bem grande. Não compro cortado, nem serrado. Tem que ser inteiro. E eu aqui corto todo nas juntas, viu? Pra não ter ponta de osso. É difícil encontrar mocotó porque eles querem vender serrado, mas esse tem o pó do osso".
Difícil mesmo é encontrar pelo Ceará mais pessoas que façam a doce iguaria (a receita está aqui).
Como as doceiras que vimos até aqui, Taiá aprendeu com a mãe Rosena Soares, mas o pai, seu Miguel, também era bom no trato das panelas. Foi chamado, há exatos 90 anos, para cozinhar na casa do então prefeito Custódio Saraiva por ocasião da passagem de Virgulino Ferreira, o Lampião, cujo bando as forças de segurança em Mossoró, no Rio Grande do Norte, tinham acabado de botar para correr com chuva de balas. Em Limoeiro do Norte o cangaceiro foi recebido com o avesso da sentença do estado vizinho.
Se o casal era dado à cozinha, as filhas são exímias doceiras. Chiquinha, a mais velha, fazia muitos bolos, pasteis e cocadas. Até hoje experimenta a lucidez aos cem anos recém-completados. E Taiá, lembrando que a mãe viveu até os 84 anos, completa a mesma idade conformada em viver mais. "Dor, ninguém deixa de sentir não, que carro velho se desmantela mesmo, mas eu faço tudo. Lavo roupa, lavo rede, varro terreiro, arrumo casa. Faço tudo.
Santo remédio
É dito na tradição que o doce é aconselhado para quem está "doente dos nervos", e foi assim que a receita chegou à família Soares.
"Minha irmã estava muito doente. Aí quando um frade esteve aqui em Limoeiro, veio visitar ela e disse pra minha mãe: 'dona Rosena, sua filha está muito acabadinha e é nervo. É fraqueza. Olhe, vou lhe ensinar o doce de mocotó'. A menina foi comendo e melhorando", lembra.
O doce de Taiá não chega para quem quer:
- O negócio é ter paciência, deixar apurar. Tem gente fazendo por aí, mas não dá o ponto certo. Aí o doce fica desandando. O ponto é quando pega a colher de pau e faz assim (levanta a colher imaginária no ar). A gente chama o babado. Quando é o primeiro, o segundo, e no terceiro o doce segura na colher de pau, aí pode tirar do fogo que já está em ponto de lata.
Para fazer o doce ela usa todo os sentidos, exceto o paladar. Tem anos que não prova. "O meu doce é rapadura".
De sol e lua
A paciência de Taiá é seguir o ritual que começa numa manhã e só termina no dia seguinte. São tantas horas com a panela no fogo que ela apaga a chama no final de uma noite para dormir algumas horas e retomar ao amanhecer do dia. Estando pronto, feito mágica, some. O dia que impacientou a doceira foi quando da iminência de perder a casa de taipa em que morava até os anos 90. Com o "progresso" chegando à cidade, a vila rodeada de mato já tinha nome de bairro e era preciso abrir ruas. Como se a culpa fosse dela, a casa de Taiá estava no meio do caminho.
- Eu briguei foi muito com quem queria abrir a estrada sem fazer minha casa. Onde já se viu? O terreno já tinha sido todo cortado com o beco. Eu disse que se fizerem a casa pode abrir o beco, mas se não fizerem eu não cedo de jeito nenhum, Só me sosseguei quando fizeram minha casa, ora mais.
Na manhã seguinte à nossa visita, um marchante do açougue lhe entregaria 10 kg de mocotó para mais uma leva dessas que, ainda quente, acaba.
Saborear a vida tem jeito
Nos anos 1500, o açúcar mudou a face culinária dentro da 'Casa Grande' e da senzala colonial, transferido para os "doces de sinhá" e "doces de rua", respectivamente. Em seu livro "Açúcar, uma sociologia do doce", algumas vezes citado aqui, Gilberto Freyre (1900-1987) lembra que uma característica do doce brasileiro é a de que é "muito doce", colocando ali em sua análise que tudo nos trópicos é dado ao exagero, inclusive o açúcar, mas que, portanto, até o doce está sujeito à condição cultural de que somos integrantes.
Talvez explique, em parte, que sejamos uma nação de 16 milhões de pessoas com diabetes, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Embora a doença não seja sempre condicionada pelo açúcar, não deixa de ser grave porque o País está ligeiramente abaixo da média mundial. Para quem precisa adoçar os caminhos de outra forma, a sugestão é comer com outros olhos e manter uma vida longe dos excessos e, assim, mais saudável. Se o objetivo maior é ter uma vida doce, não precisa que seja com açúcar.
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